O ocaso dos negócios jurídicos - crise e superação

César Fiuza

         O Código Civil de 1916 não empregou o termo negócio jurídico. As razões para a adoção desse termo genérico não são claras. Seguramente, quando da elaboração do Projeto, quando da tramitação no Congresso, a expressão negócio jurídico já havia sido há muito cunhada pela pandectística.[1]
         Compulsando linhas escritas pelo próprio autor do Projeto, Clóvis Bevilaqua, o qual também acompanhou ativamente seu iter legislativo, não se encontra explicação para o fato. Ao que tudo indica, o jurista quis mesmo usar termo mais genérico, que englobasse tanto a noção de ato jurídico em sentido estrito quanto a de negócio jurídico. Em certo momento, explica Clóvis que,

as acções humanas, que influem sobre a creação, a modificação ou a extinção dos direitos, ora actuam independentemente da vontade do agente, ora os seus effeitos resultam da vontade por elle manifestada e garan­tida pela lei.
São as acções desta segunda categoria que constituem os actos juridicos, cuja característica está na combinação harmonica do querer individual com o reconhecimento da sua efficacia por parte do direito positivo.[2]

        No trecho citado fica óbvio que o autor se refere aos negócios jurídicos. Mas por que não utilizou esta expressão, já consagrada à sua época?
É claro que não a utilizou por opção, porque quis se manter na categoria mais genérica. Tanto que em outro trecho de sua obra explica:

entre as acções humanas, que produzem effeitos jurídicos, sem que o agente os tivesse, determinadamente, pretendido obter, ou sendo indifferente que os tivesse visado, estão, de um lado, os actos illicitos, omissivos ou comissivos, e, de outro lado, certos actos a que se ligam consequencias estabelecidas pela lei independentemente da intenção com que foram rea­lizados, como, por exemplo, a mudança de domicilio.[3]

        Neste segundo trecho reporta-se o autor, explicitamente, aos atos ilícitos e aos atos jurídicos em sentido estrito.
       Nos comentários ao art. 81 do Código de 1916, Clóvis Bevilaqua dá exemplos de atos jurídicos, dentre eles apontando os contratos, o reconhecimento dos filhos, a adoção, a autorização do pai etc.[4] Como se vê, os exemplos referem-se tanto aos negócios jurídicos, como aos atos jurídicos em sentido estrito.
        Não procede, dessarte, a afirmação de que a definição do art. 81 do Código Civil de 1916 é a de negócios jurídicos. De fato, assim pode parecer num primeiro momento. Mas, a uma leitura mais atenta, percebe-se que os atos jurídicos em sentido estrito nela também podem ser incluídos.

Art. 81. Todo ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, se denomina ato jurídico.
        Ora, na letra do artigo, o que tem por fim imediato adquirir, modificar ou extinguir direitos não é a vontade apenas, mas o ato. Interpretando o artigo, percebe-se que a aquisição, a modificação etc. de direitos podem ser decorrência da vontade em concordância com a Lei (negócio jurídico), ou do próprio ato, regulamentado em lei (ato jurídico stricto sensu).
        Conclui-se, pois, que, já em 1916, o legislador, ainda que sem querer, valeu-se de categoria genérica, muito mais adequada, sem entrar em controvérsias doutrinárias, de resto inúteis, acerca dos reais limites entre negócios e atos em sentido estrito.
        Por outro lado, absolutamente na contramão, vem o Código de 2002, adotando expressamente a categoria dos negócios jurídicos (arts. 104 e seguintes), para, em seguida, mais adiante (art. 185) dispor que, aos atos jurídicos em sentido estrito aplicam-se, genericamente, as disposições referentes aos negócios jurídicos. Por que, então, não se utilizar da categoria genérica, ato jurídico, como fez o legislador de 1916, com muito maior propriedade?
        Na verdade, atualmente, o conceito de negócio jurídico se esvaziou, tor­nando-se absolutamente inútil. Se foi importante no passado, as razões se fincam no liberalismo do século XIX, que necessitava de uma categoria que pudesse ser a expressão máxima da autonomia da vontade e da liber­dade do indivíduo. Este papel exerceu com proficiência o negócio jurídico.
       Hoje em dia, porém, o estado de coisas é outro. De há muito já se aban­donaram o liberalismo clássico e o dogma da vontade. A autonomia da vontade se substituiu pela autonomia privada. A intervenção do Estado, ainda que pequena, é fenômeno consagrado e inevitável.
        Para que insistir nessas inúteis categorias dos negócios jurídicos e dos atos jurídicos stricto sensu? Não há sentido. Muito melhor, mais fácil e lógico será falar em atos jurídicos, genericamente, destacando suas espécies­ finais: contratos, testamentos, atos registrais, adoção, reconhecimentos de filhos etc., como fez o Código de 1916. De nada servem as espécies intermediárias, negócios e atos jurídicos stricto sensu.
Como bem leciona Orlando Gomes:

Como quer que seja, antes que renascimento, creio que estamos assistindo ao ocaso do negócio jurídico.
Até quando esteve alicerçado sobre ‘uma vontade necessária e suficiente a produzir efeitos jurídicos’, quando foi uma declaração para constituir, regular ou extinguir uma relação jurídica, ‘satisfez simultaneamente o interesse do comerciante-comprador e o interesse do proprietário-vendedor’, e se manteve como uma categoria lógica na qual se concentravam todos os atos, bilaterais ou unilaterais, consistentes em declarações ou acordos. A substituição do dogma da vontade pelo conceito de auto-regulação de interesses quebrou a unidade conceitual do negócio jurídico e a proteção dos interesses que transcendem os interesses pessoais das partes ou do agente exauriu a função original da categoria, tornando-a ‘obstáculo à compreensão do significado efetivo do mecanismo contratual, máscara das contradições internas da disciplina dos contratos e biombo da natureza verdadeira dos interesses em jogo’.
Eis por que, tanto do ponto de vista teórico como prático, político como técnico, a conservação da categoria negócio jurídico é a consagração de um retrocesso, e o propósito de reentronizá-lo numa parte geral do Código Civil, hoje despropositada, não passa de vã tentativa para salvar valores agonizantes do capitalismo adolescente, quando não seja crassa ignorância em doutores de que a categoria pandectística foi elaborada num contexto jurídico ultrapassado, e para atender às exigências de uma ordem econômica e social que deixou de existir.[5]

        Na mesma esteira, posiciona-se Francisco Amaral:

Mudaram porém as condições favoráveis ou determinantes desse notável trabalho intelectual, que foi o esforço de abstração jurídica que resultou no conceito de negócio jurídico. Não mais existem as condições políticas e econômicas que justificaram essa criação, assim como os juristas que a fizeram não mais detêm o monopólio da reflexão e da disciplina da vida social. [...]
Mudando tais circunstâncias, muda-se a construção jurídica correspondente, o negócio jurídico, surgindo uma série de críticas à conveniência atual dessa figura, críticas essas de natureza sistêmica e de natureza político-social.
[...]
De tudo isso se conclui que, sendo o negócio jurídico uma categoria histórica e lógica, foi válida e útil enquanto vigentes as condições que a determinaram. Mudadas as condições e destituído o conceito de sua função ideológica, não se justificaria a sua manutenção. O que permanece em pleno vigor, é o ato jurídico como gênero, e, como categoria específica de crescente importância, o contrato.[6]

        Podemos acrescentar que essa espécie do gênero atos jurídicos, os contratos, tem crescente importância, não a partir da definição oitocentista, que a identificava com os negócios jurídicos, por serem fruto da vontade individual, livre, autônoma, um verdadeiro querer no vazio, para usar as palavras de Betti. A idéia atual de contrato é totalmente diferente e, de certa forma, distanciam-nos do conceito clássico de negócio jurídico. Contratos, longe de serem fenômeno da vontade, são fruto de desejos e de necessidades econômicas e sociais as mais diversas. Celebramo-los não porque simplesmente queremos, mas porque desejamos e precisamos para fazer face a nossas necessidades do dia a dia, ainda que essas necessidades não sejam muito reais ou urgentes, criadas que são, muitas vezes, pela mídia e suas estratégias de marketing, ainda que essas necessidades sejam na verdade desejos.
        Assim sendo, as espécies intermediárias dos negócios jurídicos e dos atos jurídicos em sentido estrito não se sustentam na atualidade, sendo, por­tanto, supérflua sua inserção no texto legal, e despiciendos os debates doutrinários acerca de seus verdadeiros contornos.
       Como bem lembra Francisco Amaral, o que importa é a categoria genérica dos atos jurídicos, com suas categorias específicas, os contratos, os testamentos, os atos de registro notarial etc.
       Do estudo feito, pode chegar-se à seguinte conclusão: fato jurídico é acontecimento natural ou humano que produz alteração no mundo jurídico, seja para criar ou para extinguir, seja para modificar direito.

Dentro da órbita do fato jurídico, surge o ato jurídico. Se contiver ato de vontade, deliberado para a criação, modificação ou extinção de direito, toma, neste caso, aspecto de negócio jurídico. Ou, então, apresenta-se contendo vontade menos enérgica em relação a seus fins. Neste último caso, as conseqüências jurídicas são ex lege (da Lei), independentemente de terem sido ou não desejadas. Teremos, assim, ato jurídico em sentido estrito. Por fim, o ato jurídico pode ser contrário ao Direito, quando será ilícito.[7]

O Código Civil, com intenção de simplificar, trata exaustivamente dos negócios jurídicos e manda aplicar as mesmas regras, desde que compatíveis, aos demais atos jurídicos.
        Como vimos, a técnica do legislador de 2002 foi das mais infelizes, reentronizando duas categorias que deveriam ter sido banidas do texto legal, dada sua inutilidade teórica e prática. Referimo-nos aos negócios e aos atos em sentido estrito.
       Assim, por fato jurídico se entendam os fatos naturais e os atos jurídicos; por ato jurídico, entendam-se os atos jurídicos em sentido estrito e os negócios jurídicos; por ato ilícito, entendam-se os atos jurídicos ilícitos.

[1] Pandectística é palavra utilizada para se referir à Escola surgida na Alemanha, no século XIX, com grandes expoentes, como Savigny e Windscheid. Tinha como missão adaptar os textos romanos, principalmente do Corpus Iuris Civilis, à realidade alemã do século XIX. Ao adaptar, muito criaram e inovaram.
[2] BEVILAQUA. Theoria geral do direito civil. 2. ed., p. 270.
[3] BEVILAQUA. Theoria geral do direito civil, cit., p. 270.                               
[4] BEVILAQUA. Código civil. 3. ed., v. I, p. 316.
[5] GOMES. Autonomia privada e negócio jurídico. In: Novos temas de direito civil, p. 88/89.
[6] AMARAL. Direito civil- Introdução, 5. ed., p. 379/381.
[7] SERPA LOPES. Curso de direito civil, 7. ed., v. I, p. 365-366.
BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
BEVILAQUA, Clovis. Código Civil. 3. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1927.
BEVILAQUA, Clovis. Theoria geral do direito civil. 2. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1929.
FIUZA, César. Direito civil – Curso completo. 14. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
GOMES, Orlando. Novos temas de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil. 7. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989.